A relação mãe e filha
Se você é mãe, este livro vai lhe interessar. Se você é filha, estas páginas também não passarão em branco. "A relação mãe e filha" (Ed. Campus), livro da psicanalista Malvine Zalcberg, desperta a curiosidade de todas as mulheres, ao tentar entender como se forma a identidade feminina. Para Malvine, esse caminho passa necessariamente pela mãe. Pode ser harmonioso, se a relação for bem trabalhada tanto por uma quanto pela outra ou traumático se elas não conseguirem resolvê-la a contento. Este foi o caso da psicanalista Melanie Klein e de sua filha Melitta. A relação entre as duas sempre foi tão dramática que constituiu o tema de uma peça ora em cartaz em São Paulo, em que Nathália Timberg está no papel principal. E da qual Malvine faz o texto de apresentação.
Simone Intrator: Melanie Klein dedicou-se a descobrir a importância do papel da mãe para o bebê e tornou-se uma renomada psicanalista a partir deste seu trabalho. O que não impediu, como a peça "Melanie Klein" indica, que tenha sido acusada pela filha como responsável pela sua infelicidade.
Por quê? Como uma mãe pode ter esse poder tão devastador?
MALVINE ZALCBERG: A peça realmente trata dos profundos e dolorosos confrontos de Melanie Klein com sua filha Melitta, mostrando o quanto esta sempre se sentiu dominada pela mãe que chegou a fazer dela, um caso de estudo e de comprovação de suas teorias, sem nenhum respeito pela privacidade de seus sonhos e fantasias. Convencida pela mãe a tornar-se psicanalista é desvalorizada, ao mesmo tempo, por ela, enquanto tal: a mãe diz que ela é uma profissional medíocre. Procurando escapar do domínio que durante toda a vida a mãe havia exercido sobre ela, Melitta casa-se com um opositor da mãe e inicia uma análise com outro opositor da mãe, procurando junto a eles, forças para confrontar a mãe no campo de domínio materno por excelência: o da psicanálise. Numa das últimas cenas da peça, vemos Melitta procurando deixar a chave da casa da mãe, ameaçando não voltar, mas não consegue: volta sempre.
Mas este é um extremo de relação. Há tantas outras, mais saudáveis e harmônicas. O que a relação mãe e filha tem de tão peculiar? Por que difere tanto da relação com o filho homem ?
MALVINE: A mãe é importante na vida da filha porque ela desempenha uma dupla função: como mãe e como mulher. O futuro da filha depende, em grande parte, de como a mãe vive cada um destes dois aspectos básicos que ela deve representar para a filha e, principalmente, a articulação que a mãe faz destas duas funções em sua vida: a materna e a feminina.
Mas o filho homem não faz a distinção entre essas duas funções ?
MALVINE: Não, isso não é importante para ele. Para um filho, uma mãe vai ser sempre a mãe, primeiro objeto de amor de sua vida, figura inesquecível, que ele amará sempre. Mas o filho não vai querer identificar-se com o lado feminino da mãe; a função feminina será exercida para um filho por uma outra mulher, substituta da figura materna. A identificação viril que o menino recebe do pai o leva justamente para mais perto do pai e menos ligado à mãe como nos primeiros tempos de vida.
E a menina não pode também seguir os passos do pai ?
MALVINE: A menina também ganha do pai uma identificação viril, pois esta é uma marca de sua ligação com ele, mas isso não basta para ela, porque ela não pode "virar menino" (algumas até "viram" em função desta identificação e de uma ligação intensa demais com o pai). Mas de forma geral, a menina não se afasta tanto quanto o menino da mãe porque precisa dela para aprender a tornar-se mulher, isto é, adquirir uma identificação especificamente feminina que não é naturalmente dada e sim criada.
Muitos impasses podem ocorrer nesta constituição de uma identidade especif
MALVINE: O homem tem parâmetros mais definidos para edificar sua identificação viril. Já a identificação feminina é tecida por fios mais delicados, sutis e sinuosos e os parâmetros não são tão claramente definidos. O que não é totalmente negativo: a mulher é fundamentalmente mais criativa, inventiva e livre em sua maneira de ser do que o homem. Da mesma forma como a constituição da feminilidade da filha é um processo complexo, a relação mãe e filha também o é.
Por que a mãe é tão importante na vida de uma filha ao longo dos anos e não somente quando ela é bebê?
MALVINE: A menina fica mais tempo e mais intensamente próxima da mãe ao longo da infância toda. Pela familiaridade de uma mãe com o corpo de uma filha que ela toca com muito mais liberdade do que o de um filho, pela proximidade de corpos que a partir desta premissa se estabelece entre mãe e filha, ambas do sexo feminino, passam a confundir-se mais facilmente não só os corpos, mas os desejos também, de mãe e de filha. Isto porque o desejo de toda criança é o desejo da mãe, isto é, a criança (de ambos os sexos) deseja o que a mãe deseja; só aos poucos, a criança distingue seu desejo do da mãe; mas a menina fica mais presa ao desejo da mãe, exatamente pelos motivos que mencionei. Como a menina "precisa" da mãe, desejar o que a mãe deseja é manter-se próxima da mãe, agradá-la.
E isso torna a separação mais difícil ?
MALVINE: Sim, corpos e desejos são muito unidos. A separação é difícil. De uma forma geral, parte da filha este anseio de "distinguir-se" da mãe, de seu corpo e de seu desejo, para poder ter corpo e desejo próprios. Se a mãe não estiver pronta para ouvir este anseio, se insistir em manter a filha indistinta, problemas poderão surgir.
E essa separação se dá na adolescência ?
MALVINE: Toda adolescência representa uma fase de passagem e nem sempre é fácil, tanto para a moça quanto para o rapaz. Mas é mais difícil para a moça. Mãe e filha se acostumaram à proximidade, que é muito gratificante nos primeiros anos de vida. Algumas mães sensíveis e preparadas emocionalmente aceitam melhor o luto da perda desta proximidade tão gratificante dos primeiros anos; outras relutam, obrigando a filha a exigir com cada vez maior rebeldia, a sua liberdade; há filhas que, infelizmente, sucumbem e nem têm força para enfrentar a mãe. Ficam para sempre como "menininhas" da mamãe. Por isso, Freud dizia que um dos maiores problemas da mulher era a dificuldade de separar-se da mãe para unir-se a um homem.
E que outros tipos de mães existem ?
MALVINE: Há mães que verdadeiramente se apossam da vida das filhas, em função da proximidade dos primeiros anos e também porque a sociedade amplamente enaltece esta proximidade. Não podemos desconsiderar que há cada vez mais casos de separação entre os pais e a filha costuma ficar mais ainda sob a tutela da mãe. Mesmo quando os pais não são separados, há pais que se eximem da função paterna quando se trata de uma filha, porque alegam que "filha é para ser educada pela mãe", intensificando assim uma relação já por natureza próxima. Através das filhas, muitas mães realizam projetos narcísicos que não puderam realizar por conta própria e exercem domínio sobre a vida das filhas como talvez anteriormente a própria mãe tenha exercido sobre ela. Não há dúvida que é mais facilmente com uma filha menina que a mãe revive aspectos de sua relação com a própria mãe; na maioria das vezes aspectos mal resolvidos, que pesarão na relação que esta mãe vai ter com a própria filha, mesmo que a dimensão do amor esteja presente. Mas o amor certamente não é a única dimensão que deve entrar na relação de uma mãe com uma filha. Há mesmo mães que "amam demais" as filhas e as sufocam com seu amor. Ou mães que se amam através da filha, que deverá então corresponder ao ideal materno, o que faz com que a filha não se sinta amada por si mesma. Este poder da mãe se alicerça no poder fundamental, estrutural, da mãe sobre qualquer criança - menina e menino - no início da vida. Não há outro começo possível em função do estado de desamparo em que a criança nasce, completamente dependente de um outro, geralmente a mãe, para suprir suas necessidades. Mas a menina fica mais sujeita a esta dependência da mãe.
E como a mãe interfere na criação da identidade feminina da filha ?
MALVINE: A menina, desde pequena, observa a mãe. Ela quer saber como a mãe deu conta desta questão que aflige todas as mulheres, que é a criação de uma identidade feminina, cujos marcos referenciais não são tão definidos quanto os do homem. A mãe não pode mesmo transmitir uma definição clara do que seja uma mulher, porque tal definição não existe. Não há unanimidade quanto ao que é ser mulher: cada mulher é única e singular. Por isso, há tanto mistério em torno da feminilidade e de sua constituição por cada mulher.
A mãe pode transmitir à filha que conseguiu criar uma identificação feminina para ela própria, que não abdicou de cultivar seu lado feminino, mesmo que trabalhe e que exerça, tanto quanto homem, funções diversificadas na sociedade. Muitas queixas das filhas referem-se a mães que abdicaram do seu lado feminino e se dedicam exclusivamente à profissão ou ao seu lado materno. E o pai teria por função apreciar, valorizar o aspecto feminino da sua mulher, mãe da menina, além de apreciar a sua dedicação como mãe em assuntos de educação, alimentação, orientação, cuidados.
Qual o segredo então para as mulheres exercerem suas múltiplas funções ?
MALVINE: Quanto mais a mulher tomar conhecimento de quais os principais fatores que entram na constituição de sua condição feminina, mais ela compreenderá o que é ser mulher. Melhor exercerá a função que lhe cabe em relação à uma filha - como mãe e como mulher - favorecendo para que a filha tenha um desenvolvimento harmonioso, como mulher e futura mãe se o quiser. Mais chance terá também a mãe de construir uma sólida e pacífica relação com a filha para sempre: experiência das mais gratificantes na vida tanto de uma mãe quanto na de uma filha. A mulher se inventa, se cria e é muito desta criação, deste gostar de ser mulher e de querer arrumar-se, de ser amada por um homem, que faz parte desta expressão de feminilidade da mãe, para uma menina, que é a verdadeira transmissão possível de feminilidade de uma mãe para sua filha.
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